José Joaquim da Silva Pereira Caldas - Bando Escolástico de 1844
A Sociedade Martins Sarmento, no ensejo da comemoração do bicentenário do nascimento de José Joaquim da Silva Pereira Caldas, lembra a figura de um prolífero cultor do conhecimento e do livro.
Personalidade de múltiplos e variados interesses, o Dr. Pereira Caldas notabilizou-se pela dedicada afeição a Camões e à sua obra, pela sua valiosa biblioteca – referência por possuir o que de melhor existia na Europa erudita do seu tempo – e pelo notável ecletismo temático dos seus escritos.
Percorrer o universo bibliográfico do Professor de Liceu que foi Pereira Caldas, é, não só conhecer as suas qualidades intelectuais, mas também conhecer as dinâmicas do pensamento e das ideias do século XIX, em Portugal.
Os seus inúmeros escritos – em áreas tão diversas como a bibliofilia, educação, medicina, história, arqueologia, literatura e religião – versam sobre os quesitos do seu tempo. Tempo, que era também o das Festas Nicolinas, a que haveria de dedicar um texto para o Bando Escolástico.
A secular tradição escolástica em Guimarães – As Nicolinas – comporta uma diversificada sequência de números, onde se insere o Pregão ou Bando Escolástico.
O bando ou pregão, texto escrito em verso e declamado por um estudante pregoeiro nas ruas e praças de Guimarães, é uma composição literária de pendor satírico, na qual se espelha o olhar do autor sobre a realidade que o rodeia.
A Sociedade Martins Sarmento, volvidos 174 anos após a redação do Bando Escolástico do Dr. Pereira Caldas e na ocasião dos tradicionais festejos nicolinos, concretamente do momento O Pregão – o dia 5 de Dezembro de cada ano –, recorda os versos que o multifacetado autor das Caldas de Vizela escreveu para este número, em 1844, mas que na altura não foram recitados.
BANDO ESCOLÁSTICO 1844
Vem, grande Nicolau, vem n’este dia,
Encher a Guimarães d’alma alegria.
Téqui a juventude desditosa,
Sentada á banca velha e carunchosa,
Só tivera orações, tanta figura,
Que lhe dá desprazer, causa amargura.
Dilemmas, inducções e syllogismos,
Têm sido para nós montões d’abysmos,
Longos dias passamos la na escola,
Mas nada do que lemos nos consola;
Vem, grande Nicolau, vem n’este dia,
Encher a Guimarães d’alma alegria.
Aos nossos corações enches d’alento,
Vales mais para nós que alto sustento;
Acabou-se o penar d’um estudante,
Esqueça-se o passado n’este instante.
Férias dá Nicolau á mocidade;
Brinquedos folgasões da nossa edade,
Em honra e em louvor, gratidão sua,
Do quinto de dezembro veja a lua;
E veja o sol tambem do sexto dia
Com perfeito prazer, viva allegria.
Em todo o Guimarães vejam-se as bellas
Sem susto, sem receio, nas janellas.
Juiz hoje não ha insulso e pêco,
Que se atreva a tolher nosso embelêco;
Nem tão pouco haverá caturras paes,
Que as filhas aferrolhe em dias taes.
Vem sexo encantador, sexo do gosto,
Mostrar aos estudantes o teu rosto,
Estudantes, a flor da sociedade,
Mancebos, com primor, com gravidade,
Bucefalos rasteiros saltem, rinchem,
Airosos pelas ruas corram, pinchem:
Corra-se em Guimarães por qualquer rua,
Do grande Nicolau em honra sua.
Farças, exhibições, em toda a parte,
Comecem desde ja com graça e arte.
A toque de tambor, rufo de caixa,
Tudo hoje um estudante alaga e racha.
Vem, grande Nicolau, vem n’este dia,
Encher a Guimarães d’alma alegria.
Que gloria para vós, ó sexo amavel,
N’este dia sem par, tão respeitavel,
Em ver a vossos pés cada estudante
Mil finezas rendendo a cada instante?
Ja que o tempo veloz tão breve foge,
Apressae-vos, ó bellas, tempo é hoje;
Enchei por uma vez vossos desejos,
Tomae dos estudantes magos bejos;
Tomae-lhes com presteza os níveos braços,
Que abertos vos offerecem mil abraços;
Tomae-lhes do alvo peito o rubro pomo,
Em nada receieis feições de mômo.
Antigos trages, mascaras horrendas,
Não vos encobrem, não, feições tremendas.
Só graças juvenis, altivos brios,
Occultam semelhantes atavios.
Vossos peitos abri, sexo mimoso,
Frui hoje d’amor ardente goso.
Ouvidos não presteis ao caixeirinho,
Que quer do Deus d’amor seguir caminho;
Nada tem que vos dar, faltam-lhe as graças,
Só vos póde causar tristes desgraças.
Attendei, escutai qualquer ’studante,
Só esse é que é capaz de ser amante.
Vem, grande Nicolau, vem n’este dia,
Encher a Guimarães d’alma alegria.
Em honra vossa, Nicolau sagrado,
Tudo nos dá prazer e causa agrado.
Ancioso nos pula o coração
Apenas nos lembrar vossa funcção.
Funcção que é tão antiga e tão brilhante,
E em que só pode entrar cada estudante.
Se alguem se entrumetter n’este brinquedo,
Bem mal se sairá do seu folguedo;
Açoutes, pontapés e chicotadas,
De sobejo terá entre apupadas;
O tanque do Toural, bem cheio d’agua,
Seus brincos tornará em triste magua.
E tu, boçal Cabido, que roubaste
O que era nosso e em teus papeis achaste,
Não zombes, não, do misero estudante,
Que com dolo venceste, rapinante;
Um dia lá virá em que julgado
Talvez melhor serás e castigado.
Vós, escolastica grei, tomae sentido,
Que seja á risca o bando bem cumprido,
Porque ao som do tambor que vae rufando,
Ao ar em alto som o vou lançando.
FIM
Auctor Dr. José Joaquim da Silva Pereira Caldas
(Transcrição a partir da cópia feita por João Gomes de Oliveira Guimarães, Abade de Tagilde, respeitando a ortografia original).
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