Na saída de Emídio Guerreiro da Sociedade Martins Sarmento
Escolheu Emídio Guerreiro a Sociedade Martins Sarmento para se recolher antes da sua última caminhada pela Guimarães da sua infância, da sua juventude, da sua saudade maior em tempos de exílio, da sua alegria quando a voltou a pisar em liberdade.
Emídio Guerreiro foi um professor, um matemático, um político, um guerrilheiro, um idealista, um militante do ternário da liberdade, da igualdade e da fraternidade, um cavaleiro da utopia. Tudo isso foi, como nos tem sido recordado nestes últimos tempos, como certamente ouviremos repetir ainda hoje. Mas Emídio Guerreiro também foi, também é, um cidadão de Guimarães que amou, como poucos, a terra que o viu nascer e de que foi violentamente afastado durante quase meio século. E foi ainda um de nós, um dos que se revêem na tradição de serviço público através da cultura que está inscrita na matriz da Sociedade Martins Sarmento, que se honra de contar com Emídio Guerreiro entre os seus sócios honorários.
A história da sua vida é comparável às façanhas dos heróis da gesta medieval. Mas não para Emídio Guerreiro, que costumava afastar os elogios que lhe faziam dizendo que tudo o que terá feito não foi senão cumprir o seu dever. Contra a sua vontade, não tardará muito para que Emídio Guerreiro seja recordado como uma lenda. Mas os que tiveram o privilégio de o conhecer sabem que Emídio Guerreiro atravessou a história do século XX e existiu para além do mito que a sua vida ajudou a construir. E que continuará a ser, para os que no presente e no futuro irão passando por esta casa, o exemplo de um humanista preocupado com a solidariedade e a dignidade humanas, que se identificava com o espírito dos fundadores da Sociedade Martins Sarmento, que comungavam do ideal da elevação do homem através da cultura, como transparece da missão original que atribuíram a esta casa: Promotora da Instrução Popular.
Emídio Guerreiro foi um cidadão que se manteve sempre de olhos despertos para o mundo em convulsão em que viveu. Combateu pela liberdade onde ela perigava. Assistiu à destruição da Europa às suas próprias mãos em duas guerras devastadoras. Viu revoluções e contra-revoluções. Mas também foi testemunha de exaltantes progressos da humanidade. Até ao final dos seus dias, continuava a deslumbrar-se com os avanços da ciência e do conhecimento. Fica-nos na recordação o seu encantamento com a decifração de um enigma matemático velho de séculos quando já dobrava os cem anos.
Ele, a quem não comemoraram o primeiro centenário, mas simplesmente mais um aniversário, não se deslumbrava com a exaltação da sua imensa lucidez em idade provecta. Não se orgulhava da sua celebrada velhice, antes a olhava como uma espécie de condescendência da vida, um tempo em que se desce uma montanha, vendo outros subi-la. Não aspirava à vida eterna. Apenas a uma vida digna. Teve-a. E partiu com dignidade.
Emídio Guerreiro conhecia bem a Sociedade Martins Sarmento, a sua missão, os seus projectos e os seus problemas. Depois do desaparecimento do amigo que partiu primeiro, Santos Simões, continuou a seguir com atenção e preocupação o dia-a-dia desta casa. Deixou-lhe um importante legado que a torna em depositária da sua memória. Esta Instituição, que lhe demonstrou em vida o tamanho da sua gratidão, saberá honrar a sua memória, que passará a fazer parte do imenso património que tem à sua guarda.
Olhando para aquela pequena caixa onde nos dizem que está Emídio Guerreiro, sabemos que nos enganam. Um homem com a sua dimensão não cabe ali.
Perguntámos, como o poeta do cantar de amigo, onde está então Emídio Guerreiro?
Está dentro dos sonhos que sonhou com os olhos abertos, e que perdurarão para lá do seu desaparecimento físico. Emídio Guerreiro morreu, porque a morte é a última das leis da vida, mas continua vivo na utopia que perseguiu durante toda a sua existência.
Há circunstâncias que quase obrigam a palavras de circunstância, como as que nos mandam curvar perante a memória dos que partem. Mas hoje não nos curvaremos. Não nos curvaremos perante a memória de Emídio Guerreiro, porque o seu exemplo nos obriga a olhar em frente, com os olhos no futuro e uma imensa confiança na capacidade criadora do Homem. Apesar de tudo.
Guimarães, 3 de Julho de 2005
[Palavras ditas pelo Presidente da Direcção da Sociedade Martins Sarmento na cerimónia que antecedeu o cortejo fúnebre do Professor Emídio Guerreiro.]
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